Conhecer a letra de mão do autor dileto, acompanhar seu processo criativo, ver suas rasuras, personagens que trocaram de nome, ideias reformuladas. Para os leitores que estão se apaixonando agora por Machado de Assis (1839-1908), admiradores da vida toda estudiosos que dedicam a vida a esmiuçar seus textos, a Academia Brasileira de Letras (ABL) está oferecendo em seu site (www.academia.org.br) os manuscritos digitalizados de parte de sua obra.
Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), seus dois últimos romances, e o poema O Almada estão disponíveis desde dezembro. Os usuários podem olhar com a lupa digital as 825 páginas que contam a história dos gêmeos Paulo e Pedro, as 466 em que o Conselheiro Aires narra suas memórias e as 210 do "poema heroico-cômico em oito cantos", este pouco conhecido, publicado na obra póstuma Outras Relíquias (1910).
São raridades que apenas os consultores do arquivo da ABL podiam conhecer. A demanda vinha de pesquisadores do Brasil e do mundo. "A digitalização atende tanto ao curioso, que se pergunta como o autor chegou a seu texto e como era seu trabalho, e que, assim, terá a oportunidade de perceber que é algo árduo, quanto ao público especializado", disse o presidente da academia, Domício Proença Filho, professor, estudioso de Machado e autor de livros sobre ele.
"O teórico de literatura terá bastante material para trabalhar a chamada crítica genética, que investiga a origem do texto. O manuscrito permite o cotejo para se chegar à fixação do texto definitivo do autor que trouxe a literatura brasileira para a modernidade", explicou.
Machado foi o escolhido para dar início à divulgação dos originais no site por ter sido seu fundador e primeiro presidente e por seu papel de pilar da literatura brasileira.
A academia não tem outros originais de livros do Bruxo do Cosme Velho. Ainda este ano, vai colocar online sua correspondência, que já saiu em livro. São cartas trocadas entre 1860 e 1908 com interlocutores diversos. Em Esaú e Jacó, Memorial de Aires e O Almada, existe a dificuldade de se entender a caligrafia de Machado (que era considerada de difícil compreensão por seus editores) sobre o papel envelhecido e sob a marca d"água da ABL, mas os obstáculos não tiram o encanto da experiência de se estar diante das folhas pelas quais passou seu tinteiro, e de poder observar a ortografia da época.
A análise dos originais é uma forma de dirimir dúvidas sobre um autor que teve edições controversas, pouco cuidadosas, que mutilaram algumas de suas criações.
A importância da fixação do texto é tamanha que foi formada, em 1958 - por ocasião dos 50 anos de sua morte e da entrada de sua obra em domínio público -, a Comissão Machado de Assis, no âmbito do então ministério da Educação e Cultura. A determinação foi do presidente Juscelino Kubitschek, em reconhecimento da baixa qualidade das edições dos livros do escritor. O filólogo e acadêmico Antônio Houaiss estava na comissão.
Criado no ano de 1943, o arquivo, dirigido pelo acadêmico José Murilo de Carvalho desde 2012, abriga acervos pessoais de todos os acadêmicos que já passaram pela casa, fundada em 1897 (cerca de 300) e ainda os patronos das 40 cadeiras - escolhidos então pelos fundadores. Dele constam fotografias, cartas, recortes de jornais, livros e outros documentos de praticamente todos os nomes mais importantes da literatura nacional, como Euclides da Cunha, Castro Alves, Bernardo Guimarães, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto.
Tudo está acondicionado no prédio anexo da ABL, junto ao histórico Petit Trianon, no centro do Rio. O arquivo passou por uma reforma e hoje ocupa uma área climatizada e resguardada de incêndios por um sistema que não utiliza água (o que poderia destruir os papéis), mas gás.
"O arquivo é antigo, mas ganhou importância mais recentemente. A longo prazo queremos que tudo esteja disponível. São 500 metros lineares de arquivo de texto, além do material audiovisual e iconográfico, num total de mais de 40 mil itens", disse Carvalho.
Há acadêmicos que doam em vida seus acervos, na certeza de que terão o material preservado para a eternidade. O cineasta Nelson Pereira dos Santos vem fazendo isso, assim como o escritor Marcos Villaça, no passado recente. Entre os últimos falecidos, tiveram esse cuidado o poeta Ivan Junqueira, 1934-2014, e o jornalista Luiz Paulo Horta, 1943-2008. Outros documentos são entregues pelas famílias postumamente, contou o historiador.
"É uma opinião minha, compartilhada com outros acadêmicos: a única imortalidade que nós temos, e precária, está na biblioteca e no arquivo", considera Carvalho.
Recentemente, a casa viu chegar os dos acadêmicos Rodrigo Octavio (1866-1944) e José Veríssimo (1857-1916), dois dos fundadores, que serão importantes para revelar detalhes dos primeiros anos - o escritório de José Veríssimo foi cenário das reuniões que precederam a fundação -, e do jornalista Austregésilo de Athayde (1898-1993). As atas das reuniões desses 119 anos da ABL futuramente também estarão na internet.
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