MOLDADAS PELO BARRO

Como a pandemia, as adversidades e o artesanato impulsionaram o empreendedorismo e o empoderamento de um grupo de mulheres no interior de Alagoas

02/06/23 - 16h08

POR EBERTH LINS E MARIA MACIEL

Reconhecida como uma das grandes invenções dos povos mesopotâmicos há milhares de anos, a arte de fazer cerâmica é reproduzida em todo o mundo, das formas rudimentares às mais sofisticadas. Peças produzidas a partir da junção da argila com água, submetidas a altas temperaturas ganham formas e se fazem presentes em quase todos os domicílios como vasos, pratos, canecas, itens de decoração e muitos outros utilitários.

Essa arte milenar foi recentemente descoberta por um grupo de mulheres moradoras dos povoados Pitimiju e Gameleira, ambos localizados na Zona Rural do município de Cajueiro, no interior de Alagoas. Elas integram um grupo produtivo,
o “Caju Queimado”, onde encontraram na cerâmica, produzida com matérias-primas abundantes nos povoados, uma atividade lucrativa que tem possibilitado novos rumos a vida de cada uma delas.

Nesta
reportagem, o TNH1 conta histórias de mulheres que mais do que fabricar  cerâmica, aprenderam e aprendem diariamente sobre suas potencialidades, empoderamento e autonomia. São histórias inspiradoras possibilitadas a partir da união da força de trabalho de mulheres, do olhar solidário de quem pode ajudar e da orientação técnica do Sebrae.

O ponto de partida para essa reportagem é a chegada da empresária Virgínia Cajueiro a Alagoas, mais precisamente no interior do estado, e o encontro com outras mulheres que mais tarde se tornaram parceiras em um grupo de artesanatoTive a intuição de fazer algo com barro e senti que poderia ajudar alguém a partir desse trabalho. Foi quando chamei as meninas, eu sabia que ia dar certo e fazia questão de ensinar e encorajar cada uma delas”. A reportagem foi até à pequena cidade da Zona da Mata para conhecer de perto essas artesãs, e são elas mesmas que nos contam suas narrativas. Conheça e inspire-se... 

Virgínia Cajueiro já foi cabeleireira, teve loja de roupas, de produtos naturais e atuou no comércio por muito tempo. Que ela tinha vocação para os negócios, todos já sabiam, mas foi durante a pandemia que surgiu o projeto da Caju Queimado, empresa que produz cerâmicas decorativas e utilitárias no interior de Alagoas. Assim como as peças nascem do barro, a história da empresa foi sendo construída e moldada aos poucos. No auge da pandemia da Covid-19, em 2020, Virgínia, que à época morava na Bahia, veio se isolar na fazenda de familiares no Povoado Gameleira, em Cajueiro, a 54 km de Maceió. E foi ai que tudo começou. Inquieta, ela queria fazer alguma coisa para se manter ativa.

“Eu comecei a ficar nervosa, porque não conseguia ficar parada. Inicialmente, fiz um trabalho com as crianças do povoado e depois passei a fazer uma pintura vietnamita em vasos de barro. Como eu não conseguia encontrar no mercado peças bem acabadas, tive a ideia de produzir eu mesma. Eu nunca tinha pego no barro, não sabia nada. Daí fiz um curso online que me ajudou a aprender a técnica. Eu assistia às aulas e já colocava em prática”, lembra.

Olhando a realidade ao redor, Virgínia viu que poderia incluir mulheres do povoado no aprendizado. A maioria não tinha ocupação remunerada e ficava em casa cuidando dos filhos, enquanto os maridos saíam para trabalhar na agropecuária. A empresária enxergava ali uma oportunidade de negócio que poderia transformar a vida da comunidade.

Casada e mãe de dois filhos, a jovem Mayara Magda, de 29 anos, conta que a oportunidade de trabalho tem possibilitado descobertas e conquistas, até então, improváveis. Ela é moradora do Povoado Pitimiju, que fica vizinho à oficina de cerâmica, e integra o grupo de artesãs há quase um ano, quando teve o primeiro contato com o artesanato.

"Trabalhar mudou meu modo de pensar, mudou praticamente quase tudo na minha vida. Hoje eu me sinto uma mulher realizada e útil. Eu sei que posso chegar aqui, pegar o barro e transformar numa obra de arte", disse a jovem mãe, que estudou até o 1º ano do Ensino Médio e comemora a conquista de não depender somente do Bolsa Família, programa de transferência de renda do Governo Federal.

"Como todo mundo sabe, a gente que é baixa renda tem essa ajuda, mas depois que eu comecei a trabalhar, sei que posso dar uma vida melhor aos meus filhos. Não dependo mais do Bolsa Família e nem do meu esposo", disse ela orgulhosa.

A novidade de ter uma ocupação remunerada também é experimentada pela colega Maria Calcidiana, de 43 anos. Veterana na vida, Dona Calcidiana encontrou no novo trabalho uma vida além do papel de mãe e esposa.

"Antes eu não sabia fazer nada e ainda hoje fico surpresa com o que a gente consegue fazer aqui. Nosso trabalho é lindo, eu fico até emocionada. Além disso, agora tenho meu próprio dinheiro, consigo comprar o que falta em casa para minha família, chegar num mercado e trazer o que gosto e não só o que dava com o dinheiro dos outros", comemora.

Feliz com os rumos que tem dado à vida, Maria Ariana de Lima Silva, de 37 anos, exibe orgulhosa a Carteira Nacional do Artesão. Ariana, como gosta de ser chamada, trabalha meio período numa escola da cidade como auxiliar de serviços gerais e no contraturno se dedica ao artesanato, o que tem possibilitado a concretização de um antigo sonho:

"Estou construindo minha casa, uma casa ajeitadinha, com quartos, cozinhas e que não vou mais me preocupar nos dias de chuvas. Moro aqui desde que me entendo por gente, nasci e me criei nesse povoado e desde pequena que brinco com o barro, nunca imaginei que pudesse transformar em algo útil para as pessoas e ainda conseguir pagar a minha casa", diz a artesã, que estudou até o 7º ano do Ensino Fundamental.

De Cajueiro para a Europa: cerâmicas ganham mercado fora do Brasil

Toda a comercialização dos produtos do grupo produtivo é feita a partir da Internet. O Caju Queimado mantém uma página na rede social Instagram, onde as peças e parte do trabalho das mulheres são expostos. Muitos se encantam com a história e querem conhecer o projeto.

O empresário espanhol Valentim Navarro vai abrir uma pousada no município de Japaratinga, Litoral Norte de Alagoas, e ficou encantado com as peças produzidas de forma artesanal pelas mulheres de Cajueiro. Ele veio de longe para encomendar pratos, tigelas e outros objetos em cerâmica que serão utilizados no restaurante da pousada. 

Para o empresário, as peças são únicas e tem a identidade que quer imprimir ao estabelecimento. “O nome da nossa pousada é Coaraci, do tupi-guarani. Nós gostamos muito da história das coisas. Não queremos colocar algo sem sentido, só por decoração. Nós gostamos das raízes locais, por isso decidimos comprar os produtos”, diz ele.

Fazendo arte: o processo de criação das peças

A argila é retirada do próprio terreno da fazenda e nas mãos das artesãs viram arte. O TNH1 acompanhou o processo, que é longo, mas parte dele pode ser conferido no vídeo abaixo. De mãos ágeis e movimentos precisos nascem peças encantadoras que põe a subsistência na mesa dessas famílias, e orgulho e empoderamento na vida das mulheres da Caju Queimado.

O processo de produção tem uma série de fases. Começa com a retirada do barro (extração), tratamento (o barro passa por desintegração, mistura, refino e umedecimento) e a secagem. Depois desse processo, a argila é colocada em sacos plásticos e armazenada.

O artesanato gera renda e empoderamento, resignificando a vida dessas mulheres. O resultado, cheio de cores e afeto, são peças únicas, carregadas de significado. O repórter fotográfico Itawi Albuquerque registrou imagens que mostram desde o processo de fabricação até as peças prontinhas para encantar ambientes dos mais variados. Veja as imagens:

(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)
(Foto: Itawi Albuquerque / TNH1)

Projeto impacta na independência financeira e no crescimento pessoal das mulheres

Marina Gatto, gestora de Artesanato do Sebrae-AL, destacou o impacto positivo da atividade desenvolvida pelo grupo produtivo Caju Queimado. "O mais bacana dessa atividade é que tem um olhar muito voltado não só para o mercado em si, mas pelo desenvolvimento social e econômico das mulheres que estão envolvidas. É uma iniciativa que desenvolve e melhora a qualidade de vida da comunidade", pontuou.

A consultora frisa ainda o potencial do grupo de mulheres, que segundo ela, "teve início de forma muito correta". "Além das técnicas de utilização do barro, elas estão buscando certificação de que não há agressão à natureza, sem falar das referências às artes alagoanas, a exemplo das rendas que são colocadas nas cerâmicas. O Sebrae vai seguir apoiando para que elas possam se apropriar ainda mais e conquistar novos mercados e caminhos", acrescentou.

"Se olhar por parte dos donos da fazenda e da própria liderança do projeto, a Virgínia, que estudou, se capacitou e ensinou as meninas para que elas se desenvolvam e gerem uma renda através dessa atividade, esta iniciativa é um tipo de empreendedorismo social. Eles não precisam, não necessitam, mas estão fazendo algo para a comunidade em que estão inseridos", completou Marina Gatto.

Sebrae Delas: atendimento personalizado empodera e promove autonomia

No vasto universo do empreendedorismo, uma iniciativa tem feito a diferença ao impulsionar negócios pensados, compostos e liderados por mulheres. O Sebrae Delas é responsável em promover mentorias e capacitações nas áreas de gestão e inovação para mulheres empreendedoras. "Dentre tantas as vantagens de se trabalhar com mulheres podemos dizer que quando uma mulher empreende, ela gera emprego e renda, faz a economia girar e encoraja a participação de outras mulheres nos negócios. E consegue alcançar a sua independência financeira que por vezes a liberta de relacionamentos abusivos, tanto profissional como pessoal", frisa a coordenadora da iniciativa, Erica Pereira.

O Sebrae Delas, Desenvolvendo Empreendedoras Líderes Apaixonadas pelo Sucesso, é um programa de aceleração com o objetivo de aumentar a probabilidade de sucesso de ideias e negócios liderados por mulheres. O programa busca valorizar as competências, comportamentos e habilidades das mulheres, difundindo o empreendedorismo feminino. "Para as orientações e capacitações, atendemos tanto pessoas físicas quanto jurídicas. Já as consultorias técnicas especializadas são apenas para as empreendedoras formalizadas", explica.

O Sebrae Delas é estruturado em três pilares

As mulheres dos povoados Pitimiju e Gameleira são um exemplo de que é possível sonhar e acreditar num futuro melhor por meio do empreendedorismo. "É ótimo para nossa autoestima. Eu era dona de casa e agora tenho uma profissão, que é artesã. Tenho uma renda todo mês, o meu próprio dinheiro, isso é muito bom. Me sinto valorizada", comemora Edinete Barbosa, de 29 anos.