"Vivemos sob a ditadura do algoritmo, que piora a polarização", diz filósofo de Harvard

Publicado em 18/08/2023, às 19h49
Foto: Telemadrid -

Folhapress

Considerado o mais pop filósofo da atualidade, Michael J. Sandel defende que apenas a mobilização da sociedade civil fora de governos e grandes empresas poderá salvar a democracia, restabelecendo o princípio da discussão civilizada entre quem pensa diferente.

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A "ditadura do algoritmo", disse ele à Folha, por vídeo, "piora a polarização". Para o americano, hoje esse é o maior elemento corrosivo da democracia: a repetição de padrões de consumo em bolhas. "Perdemos a arte do discurso público porque perdemos a habilidade de ouvir palavras, princípios, convicções, opiniões."

A crise atual alimenta o populismo em escala global, que explodiu em 2016 com a eleição de Donald Trump à Presidência dos EUA e chegou ao Brasil com Jair Bolsonaro (PL). Para Sandel, o republicano está vivo na disputa pela Casa Branca em 2024 porque Joe Biden fracassou em atender às demandas da classe trabalhadora.

Esse embate é o tema do livro que o filósofo lança agora no Brasil pela Editora Civilização Brasileira, na realidade a revisão de seu clássico "O Descontentamento da Democracia", de 1996. Ele, que é autor do celebrado curso "Justiça", da Universidade Harvard —na qual leciona—, virá ao Brasil para participar do ciclo Fronteiras do Pensamento em São Paulo, no dia 7, e em Porto Alegre, no dia 9.

O populismo é um fenômeno global, e o sr. diz que o descontentamento que o gerou está vivo, como Trump e Bolsonaro provam. Onde seus sucessores falharam?
De fato, há similaridades. Trump foi derrotado nos EUA não por uma face nova de uma geração emergente, oferecendo uma visão nova e diferente, mas por um político da velha geração, Joe Biden. Parece haver um paralelo com Lula. Trump foi derrotado, mas não foi descartado pelo eleitorado, teve 74 milhões de votos.

No Brasil foi o mesmo, quase meio a meio.
Isso mostra o eleitorado polarizado. Nos EUA, os democratas eram tradicionalmente os representantes dos trabalhadores contra as elites. Agora, é identificado com as classes mais bem educadas. Porque nos últimos 30, 40 anos, os democratas abraçaram a fé no mercado, uma versão neoliberal da globalização.

Também fizeram muito pouco para tratar da desigualdade, da dignidade e do reconhecimento social dos trabalhadores. Acabaram assim elegendo Trump, com um senso de ressentimento. Esse sentimento não foi resolvido, apesar de Biden ter vencido em 2020. Ele o fez porque atraiu de volta eleitores da classe média. Mas nem Biden nem o Partido Democrata restabeleceram a credibilidade com os trabalhadores. O curioso é que a direita parece ter sido mais eficaz, no discurso, em reagir aos desafios da desigualdade.

É um paradoxo. Ocorreu nos EUA e no Reino Unido. A maioria dos britânicos votou pelo brexit. Vimos o mesmo com os sociais-democratas de França e Alemanha. Eles só tinham a oferecer a mobilidade social individual por meio da educação superior. A mensagem era: se você quer competir e vencer na economia global, vá para a universidade e o que você ganhar será resultado do que você aprender. Você consegue!

Claro, é ótimo ter acesso amplo à educação. Mas havia um insulto implícito nesse conselho. Se você não tiver um diploma, isso é culpa sua. Dois terços dos americanos não têm diploma, algo similar na Europa.
Uma vez no cargo, contudo, Trump se mostrou um populista de mentira. Fez pouco para ajudar quem votou nele, mas, simbolicamente, posicionou-se contra as elites. O desafio para os partidos progressistas é separar essas queixas legítimas dos seus aspectos mais feios e responder a elas.

Essa crítica à meritocracia [tema do livro "A Tirania do Mérito"] não acaba implicando um certo paternalismo nas relações sociais?
Você descreveria como paternalismo ou como um reconhecimento das obrigações mútuas entre cidadãos numa boa sociedade? Acredito na segunda definição. Porque se levarmos a primeira definição a sério, temos de acreditar que um gerente de fundo de hedge gera mil vezes mais valor social à economia do que um professor ou um médico. Então, há uma questão para o debate público. Isso seria paternalista?

O sr. vê um modelo?
Espero que haja um leque de modelos para discutirmos. Algo que fique entre o livre mercado de Margaret Thatcher e Ronald Reagan de um lado, e China e Coreia do Norte do outro? Espero que não sejam os únicos modelos disponíveis. A maioria das sociedades democráticas tem um misto de capitalismo e Estado de bem-estar social. Não acho que haja um modelo único, mas começaria pela experiência social-democrata da Europa. No Brasil, o primeiro governo Lula ofereceu o Bolsa-Família. Mas esse é o primeiro passo. Outro elemento é submeter os mercados ao escrutínio democrático.

É preciso não permitir que grandes corporações se tornem tão grandes que escapem de prestar contas à democracia. Um exemplo poderoso é a tradição anticartel e antimonopolista americana, que começou não só como uma forma de impedir que grandes empresas aumentem os preços, mas em prol da democracia. Isso começa com bancos e a indústria de petróleo e ferrovias, e hoje são as empresas de tecnologia e de mídias sociais. O problema não é que elas aumentam preços, é que elas não prestam contas, espalham mentiras e contribuem para a polarização com todos seus algoritmos.

Vivemos sob a ditadura do algoritmo. É isso. A ditadura do algoritmo causa esse efeito de piorar a polarização. E aí entra também a inteligência artificial, o próximo patamar.

Há a questão da privacidade. É uma questão de democracia. Qual é o impacto do modelo de negócios dessas empresas, dessa ditadura do algoritmo? Ela nos alimenta com feeds e vídeos inflamados para nos manter grudados na tela, para que possam nos vender coisas. É, também, um reforço de opinião, em vez de nos expor a opiniões divergentes. Uma democracia saudável requer uma esfera pública, em que os cidadãos aprendam o hábito de ponderar e argumentar com pessoas das quais discordam.

O sr. sempre fala sobre a falta dessa ágora [espaço público de debate da Grécia Antiga]. Mas aponta para um momento, após a Segunda Guerra, em que isso teria sido perdido nos EUA. Isso não é meio idílico?
Não concordo com uma imagem dourada do passado. Mesmo se considerarmos a história dos jornais, desde o começo havia publicações altamente partidárias e inflamadas, e as pessoas liam os jornais que correspondiam às suas opiniões. Só que agora é mais pervasivo. Mesmo nos tempos áureos dos jornais, as pessoas não ficavam olhando para eles a cada segundo. Quando lançaram o Facebook, por exemplo, a promessa era dar acesso a todos para uma plataforma de discurso que nos uniria. Aconteceu o contrário.

Temos de redirecionar as novas tecnologias para criar essa ágora. Isso não pode ser deixado para o mercado, governos e empresas. A sociedade civil, elites, educadores, empresas de mídia tradicionais têm de se envolver. Não devemos ver a tecnologia como inimiga, mas usá-la. Você me acha muito idealista?
Sim. Com a volta da competição entre Estados e a Guerra da Ucrânia, a realidade política e econômica dominam o debate mundial.Voltemos à ágora. Temos o Estado forte e as big tech. Essas duas forças, se não desafiadas, não podem sustentar uma democracia saudável. Precisamos de um terceiro ingrediente, um contrapeso, que é uma sociedade civil robusta.

Perdemos a arte do discurso público porque perdemos a habilidade de ouvir não só palavras, mas princípios, convicções, opiniões. Isso não pode ser legislado pelo Estado nem pelo algoritmo. O que me dá esperança é que, em todo lugar em que dou palestras, houve engajamento, em especial de jovens. Vejo uma vontade por um discurso público melhor, em todo o espectro político.

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