Quando o crime compensa: “Não é mais cabível legitimar julgamentos cujos resultados dependem de quem é acusado”

Publicado em 29/05/2024, às 17h06 - Atualizado às 19h30

Redação

No Brasil, política e justiça frequentemente redefinem o que é considerado crime.

Um contexto que legitima ações corruptas e desafia a noção de imparcialidade.

É esse o entendimento do antropólogo e escritor Roberto Damatta:

 

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“Quando era menino e ignorava o poder das molduras sociais, estava certo de que não. O crime não compensava!

“Acontece que cresci. Sou cidadão de uma sociedade que se conforma em fazer-se e desfazer-se periodicamente. Para piorar, estudei Antropologia Social, uma ciência oculta cuja fantasia é compreender o temperamento das sociedades humanas. E me defrontei com o ditado segundo o qual ‘pornografia é uma questão de geografia’.

Ou seja, cada costume tem que ser compreendido no contexto (ou moldura, como diz Erving Goffman) ao qual pertence. Por exemplo: assassinamos no palco de um teatro, realizamos assaltos perfeitos no cinema e, com Machado de Assis, criamos uma igreja do Diabo. Mas tudo no plano da ficção. As artes, a história e a moda revelam como o que é rotineiro aqui e hoje pode ser temerário acolá e amanhã.

Neste sentido, devo mencionar o nosso reacionarismo relativo à Abolição da Escravatura, ao analfabetismo, ao igualitarismo republicano e ao divórcio como instituições enquadradas como delinquentes num Brasil que continua relativizando claríssimos crimes de corrupção exibidos em horário nobre de televisão.

O crime, como o pornográfico, depende de como ele é enquadrado. No Ocidente cristão, matar transita, de modo perturbador, de pecado mortal nas leis de Deus a ato patriótico em caso de guerra. Isso vale também para o sexo, santificado no casamento religioso e condenado fora dele…

No Brasil, a moldura da política e a política como moldura têm a capacidade de legitimar descalabros e incoerências. É nessa esfera que os corruptos de ontem são suprema e monocraticamente anistiados, enquanto seus ‘algozes’ são ‘fudidos’ (não fui eu, mas Lula III, quem disse) e viram bandidos.

Tais cambalhotas fundadas em exegeses jurídicas momescas caracterizam nossa esfera política. Roubar no governo é ‘arrumar-se’ ou cruelmente vingar-se e, assim, endossar uma elite complacente que, por isso mesmo, permanece ancorada na ‘política’ cujo fim não é administrar, mas mandar.

Ofende a democracia testemunhar uma suprema corte emudecer diante de um revisionismo legal que transforma a História em ‘armação’, liquidando plausibilidades e insultando o bom senso.

Se vivemos num País ao qual devemos respeito e devoção, não é possível silenciar quando notamos como a esfera político-jurídica – esse campo nobre de governabilidade democrática – é um saco sem fundo.

A esfera da política não pode estar subordinada a projetos e cálculos pessoais. Ela não pode servir de moldura para suprimir a impessoalidade que é a essência da justiça. Não é mais cabível legitimar julgamentos cujos resultados dependem de quem é acusado, numa sobrevivência cabal das aristocracias.

Hoje, sou um velho de 87 anos forçado a admitir que o crime depende. Se o acusado for pobre, ele não compensa. Mas, se for bem relacionado politicamente, compensa!”

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